BIBLIOTHECA AUGUSTANA

 

Fernão Lopes

1380 ? - 1460

 

Chronica do

Senhor Rei D. Pedro I,

oitavo Rei de Portugal

 

Capitulo VIII

 

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CAPITULO VIII

Como el-rei mandou capar

um seu escudeiro, porque dormiu

com uma mulher casada.

 

Era ainda el-rei Dom Pedro muito cioso, assim de mulheres de sua casa, como de seus officiaes e das outras todas do povo, e fazia grandes justiças em quaesquer que dormiam com mulheres casadas ou virgens, e isso mesmo com freiras.

Onde aqueeceu que em sua casa havia um corregedor da côrte a que chamavam Lourenço Gonçalves, homem mui entendido e bem razoado cumpridor de todas as cousas que lhe el-rei mandava fazer, e não corrompido por nenhuns falsos offerecimentos que trasmudam os juizos dos homens. E porque o el-rei achava leal e bem verdadeiro, fiava d'elle muito, e queria-lhe grande bem.

E era este corregedor muito honrado de sua casa e estado, e muito praceiro e de boa conversação, e seria então em meia idade. Sua mulher havia nome Catharina Tosse, briosa, louçã e muito aposta, de graciosas manhas e bem acostumada.

Em esta sesão vivia com el-rei um bom escudeiro, e para muito, mancebo, e homem de prole, e n'aquelle tempo estremado em assignadas bondades, grande justador e cavalgador, grande monteiro e caçador, luctador e travador de grandes ligeirices, e de todas as manhas que se a bons homens requerem, – chamado por nome Affonso Madeira, – por a qual rasão o el-rei amava muito e lhe fazia bem gradas mercês.

Este escudeiro se veiu a namorar de Catharina Tosse, e mal cuidados os perigos que lhe advir podiam de tal feito, tão ardentemente se lançou a lhe querer bem, que não podia perder d'ella vista e desejo: assim era traspassado do seu amor. Mas, porque lugar e tempo não concorriam para lhe fallar como elle queria, e por ter aso de a requerer ameude de seus deshonestos amores, firmou com o aposentador tão grande amisade que para onde quer que el-rei partia, ora fosse villa ou qualquer aldeia, sempre Affonso Madeira havia de ser aposentado junto, ou muito perto do corregedor. E havia já tempo que durava este aposentamento, sempre cerca um do outro; tendo bom geito e conversação com seu marido, por carecer de toda suspeita.

Affonso Madeira tangia e cantava, afóra sua apostura e manhas boas já recontadas, de guisa que por aso de tal achegamento, com longa affeição e falas ameude, se gerou entre elles tal fructo, que veiu elle a acabamento de seus prolongados desejos.

E porque semelhante feito não é da geração das cousas que se muito encobram, houve el-rei de saber parte de toda sua fazenda, e não houve d'ello menos sentido que se ella fora sua mulher ou filha. E como quer que o el-rei muito amasse, mais que se deve aqui de dizer, posta de parte toda bemquerença, mandou-o tomar dentro em sua camara, e mandou-lhe cortar aquelles membros que os homens em mór preço tem: de guisa que não ficou carne até aos ossos, que tudo não fosse corto. E pensaram Affonso Madeira, e guareceu, e engrossou em pernas e corpo, e viveu alguns annos engelhado do rosto e sem barbas, e morreu depois de sua natural morte.