BIBLIOTHECA AUGUSTANA

 

Fernão Lopes

1380 ? - 1460

 

Chronica do

Senhor Rei D. Pedro I,

oitavo Rei de Portugal

 

Capitulo XII

 

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CAPITULO XII

Da maneira que os reis

tinham para fazer thesouros,

e accrescentar n'elles.

 

Já vós ouvistes bem quanto os réis antigos fizeram por encurtar nas despezas suas e do reino, pondo ordenações em si e nos seus, por terem thesouros e serem abastados. Porque sendo o povo rico, diziam elles que o rei era rico, e o rei que thesouro tinha, sempre era prestes para defender seu reino e fazer guerra quando lhe cumprisse, sem aggravo e damno de seu povo, dizendo que nenhum era tão seguro de paz que pudesse carecer de fortuna não esperada.

E para encaminharem de fazer thesouro, tinham todos esta maneira: em cada um anno eram os reis certificados, pelos védores de sua fazenda, das despezas todas que feitas haviam, assim em embaixadas como em todas as outras coisas, que lhe necessariamente convinham fazer, e diziam-lhe o que além d'isto sobejava de suas rendas e direitos, assim em dinheiros como em quaesquer coisas, e logo era ordenado que se comprasse d'elles certo oiro e prata para se pôr no castello de Lisboa, em uma torre, que para isto fôra feita, que chamavam a torre albarrã.

Esta torre era mui forte, e não foi porém acabada. Estava em cima da porta do castelo, e alli punham o mais do thesouro que os reis juntavam em oiro e prata e moedas, e tinham as chaves d'ella, um guardião de São Francisco, e outra o prior de São Domingos, e a terceira um beneficiado da Sé d'essa cidade.

E para juntarem este oiro e prata, tinham este modo: em todas as cidades e villas do reino que para isto eram azadas, tinham os reis seus cambadores, que compravam prata e oiro áquelles que o vender queriam, o qual não havia de comprar outrem senão elles, e acabado o anno, trazia cada um quanto comprara áquelles lugares onde havia de ser posto em thesouro: e haviam estes cambadores certa cousa de cada peça de oiro que compravam, e o que sobejava em moeda punham-no isso mesmo em deposito.

Outra torre havia no castello de Santarem, em que outrosim estava mui gran thesouro de moeda e d'outras cousas, em tamanha quantidade, que ante a pontavam fortemente por não cair com o muito haver que n'ella punham.

E d'esta guisa estava no Porto, e em Coimbra, e n'outros lugares.

E posto alli, em cada um anno aquelle oiro, e prata, e moedas que assim ficavam, e que os reis mandavam comprar, quando o rei vinha a morrer, e prégavam d'elle e dos bens que fizera, dizendo como o reinara tantos annos e mantivera em direito e justiça, contavam-lhe mais por grande bondade, e louvando-o muito, diziam: – este rei, em tantos annos que reinou, poz nas torres do thesouro tanto oiro, e prata, e moedas. E quanto cada um rei n'ellas punha, tanto lh'o contavam por muito mór bondade.

El-rei Dom Pedro, como reinou, pareceu a alguns que não tinha sentido de ordenar que accrescentassem no thesouro, que os antigos com grande cuidado começaram de guardar. E vendo isto um seu privado, que chamavam João Esteves, houve-o por grande mal, e propoz de lh'o dizer, e fallando el-rei com elle uma vez, em coisas de sabor, disse elle a el-rei em esta guisa: – Senhor, a mim parece, se vossa mercê fosse, que seria bem de proverdes vossa fazenda, e vêr o que se dispender póde, e, do que sobejar, encaminhardes como accrescenteis alguma cousa nos thesouros que vos ficaram de vosso padre e de vossos avós, para fazerdes o que os outros reis fizeram, e para terdes que dispender mais abundosamente se vos alguma necessidade viesse á mão, cá muito mais com vossa honra dispendereis vós accrescentando no thesouro que tendes, que gastar o que os outros reis deixaram, sem pôr n'elle nenhuma coisa.

A estas e outras razões respondeu el-rei que dizia bem, e que lhe puzesse em escripto quanto era o que renderiam seus direitos, e a despeza que se d'ello fazia. A poucos dias trouxe o privado, em escripto, tudo aquillo que lhe el-rei dissera, e visto por ambos apartadamente, acharam que tiradas as despezas que os reis em costume tinham de fazer, que sómente no seu thesouro de Lisboa podia cada anno pôr na torre do castello até quinze mil dobras.

E ordenou logo, como se puzesse cada anno, em oiro, e prata, e moedas, tudo o que sobejasse de suas rendas, nos lugares acostumados onde os reis punham seu haver; porém que dizia el-rei que não fazia pouco quem guardava o thesouro que lhe ficava de outrem e se mantinha nos direitos que havia de seu reino, sem fazendo aggravo ao povo, nem lhe tomando do seu nenhuma coisa. E ficaram todos por sua morte a el-rei Dom Fernando, seu filho, que os depois gastou como lhe prouve, segundo adiante ouvireis.