BIBLIOTHECA AUGUSTANA

 

Luís Vaz de Camões

1524/25 -1580

 

Os Lusíadas

 

Canto VI

 

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Canto sexto.

 

1

Não sabia em que modo festejasse

O Rei Pagão os fortes navegantes,

Para que as amizades alcançasse

Do Rei Cristão, das gentes tão possantes;

Pesa-lhe que tão longe o aposentasse

Das Européias terras abundantes

A ventura, que não no fez vizinho

Donde Hércules ao mar abriu caminho.

 

2

Com jogos, danças e outras alegrias,

A segundo a polícia Melindana,

Com usadas e ledas pescarias,

Com que a Lageia António alegra e engana

Este famoso Rei, todos os dias,

Festeja a companhia Lusitana,

Com banquetes, manjares desusados,

Com frutas, aves, carnes e pescados.

 

3

Mas vendo o Capitão que se detinha

Já mais do que devia, e o fresco vento

O convida que parta e tome asinha

Os pilotos da terra e mantimento,

Não se quer mais deter, que ainda tinha

Muito para cortar do salso argento;

Já do Pagão benigno se despede,

Que a todos amizade longa pede.

 

4

Pede-lhe mais que aquele porto seja

Sempre com suas frotas visitado,

Que nenhum outro bem maior deseja,

Que dar a tais barões seu reino e estado;

E que enquanto seu corpo o espírito reja,

Estará de contino aparelhado

A pôr a vida e reino totalmente

Por tão bom Rei, por tão sublime gente.

 

5

Outras palavras tais lhe respondia

O Capitão, o logo as velas dando,

Para as terras da Aurora se partia,

Que tanto tempo há já que vai buscando.

No piloto que leva não havia

Falsidade, mas antes vai mostrando

A navegação certa, e assim caminha

Já mais seguro do que dantes vinha.

 

6

As ondas navegavam do Oriente

Já nos mares da Índia, e enxergavam

Os tálamos do Sol, que nasce ardente;

Já quase seus desejos se acabavam.

Mas o mau de Tioneu, que na alma sente

As venturas, que então se aparelhavam

A gente Lusitana, delas dina,

Arde, morre, blasfema e desatina.

 

7

Via estar todo o Céu determinado

De fazer de Lisboa nova Roma;

Não no pode estorvar, que destinado

Está doutro poder que tudo doma.

Do Olimpo desce enfim desesperado;

Novo remédio em terra busca e toma:

Entra no úmido reino, e vai-se à corte

Daquele a quem o mar caiu em sorte.

 

8

No mais interno fundo das profundas

Cavernas altas, onde o mar se esconde,

Lá donde as ondas saem furibundas,

Quando às iras do vento o mar responde,

Netuno mora, e moram as jocundas

Nereidas, e outros Deuses do mar, onde

As águas campo deixam às cidades,

Que habitam estas úmidas deidades.

 

9

Descobre o fundo nunca descoberto

Das areias ali de prata fina;

Torres altas se vêem no campo aberto

Da transparente massa cristalina:

Quanto se chegam mais os olhos perto,

Tanto menos a vista determina

Se é cristal o que vê, se diamante,

Que assim se mostra claro e radiante.

 

10

As portas douro fino, e marchetadas

Do rico aljôfar que nas conchas nasce,

De escultura formosa estão lavradas,

Na qual o irado Baco a vista pasce;

E vê primeiro em cores variadas

Do velho Caos a tão confusa face;

Vêem-se os quatro elementos trasladados

Em diversos ofícios ocupados.

 

11

Ali sublime o Fogo estava em cima,

Que em nenhuma matéria se sustinha;

Daqui as coisas vivas sempre anima,

Depois que Prometeu furtado o tinha.

Logo após ele leve se sublima

O invisível Ar, que mais asinha

Tomou lugar, e nem por quente ou f rio,

Algum deixa no mundo estar vazio.

 

12

Estava a terra em montes revestida

De verdes ervas, e árvores floridas,

Dando pasto diverso e dando vida

As alimárias nela produzidas.

A clara forma ali estava esculpida

Das águas entre a terra desparzidas,

De pescados criando vários modos,

Com seu humor mantendo os corpos todos.

 

13

Noutra parte esculpida estava a guerra,

Que tiveram os Deuses com os Gigantes;

Está Tifeu debaixo da alta serra

De Etna, que as flamas lança crepitantes;

Esculpido se vê ferindo a terra

Netuno, quando as gentes ignorantes

Dele o cavalo houveram, e a primeira

De Minerva pacífica oliveira.

 

14

Pouca tardança faz Lieu irado

Na vista destas coisas, mas entrando

Nos paços de Netuno, que avisado

Da vinda sua, o estava já aguardando,

As portas o recebe, acompanhado

Das Ninfas, que se estão maravilhando

De ver que, cometendo tal caminho,

Entre no reino d'água o Rei do vinho.

 

15

Ó Netuno, lhe disse, não te espantes

De Baco nos teus reinos receberes,

Porque também com os grandes e possantes

Mostra a Fortuna injusta seus poderes.

Manda chamar os Deuses do mar, antes

Que fale mais, se ouvir-me o mais quiseres;

Verão da desventura grandes modos:

Ouçam todos o mal, que toca a todos.

 

16

Julgando já Netuno que seria

Estranho caso aquele, logo manda

Tritão, que chame os Deuses da água fria,

Que o mar habitam duma e doutra banda.

Tritão, que de ser filho se gloria

Do Rei e de Salácia veneranda,

Era mancebo grande, negro e feio,

Trombeta de seu pai, e seu correio.

 

17

Os cabelos da barba, e os que descem

Da cabeça nos ombros, todos eram

Uns limos prenhes d'água, e bem parecem

Que nunca brando pentem conheceram;

Nas pontas pendurados não falecem

Os negros misilhões, que ali se geram,

Na cabeça por gorra tinha posta

Uma muito grande casca de lagosta.

 

18

O corpo nu, e os membros genitais,

Por não ter ao nadar impedimento,

Mas porém de pequenos animais

Do mar todos cobertos cento e cento:

Camarões e cangrejos, e outros mais

Que recebem de Febe crescimento,

Ostras, e camarões do musgo sujos,

As costas com a casca os caramujos.

 

19

Na mão a grande concha retorcida

Que trazia, com força, já tocava;

A voz grande canora foi ouvida

Por todo o mar, que longe retumbava.

Já toda a companhia apercebida

Dos Deuses para os paços caminhava

Do Deus, que fez os muros de Dardânia,

Destruídos depois da Grega insânia.

 

20

Vinha o padre Oceano acompanhado

Dos filhos e das filhas que gerara;

Vem Nereu, que com Dóris foi casado,

Que todo o mar de Ninfas povoara;

O profeta Proteu, deixando o gado

Marítimo pascer pela água amara,

Ali veio também, mas já sabia

O que o padre Lieu no mar queria.

 

21

Vinha por outra parte a linda esposa

De Netuno, de Celo e Vesta filha,

Grave e Ieda no gesto, e tão formosa

Que se amansava o mar de maravilha.

Vestida uma camisa preciosa

Trazia de delgada beatilha,

Que o corpo cristalino deixa ver-se,

Que tanto bem não é para esconder-se.

 

22

Anfitrite, formosa como as flores,

Neste caso não quis que falecesse;

O Delfim traz consigo, que aos amores

Do Rei lhe aconselhou que obedecesse.

Com os olhos, que de tudo são senhores,

Qualquer parecerá que o Sol vencesse:

Ambas vêm pela mão, igual partido,

Pois ambas são esposas dum marido.

 

23

Aquela que das fúrias de Atamante

Fugindo, veio a ter divino estado,

Consigo traz o filho, belo Infante,

No número dos Deuses relatado.

Pela praia brincando vem diante

Com as lindas conchinhas, que o salgado

Mar sempre cria, e às vezes pela areia

No colo o to a a bela Panopeia.

 

24

E o Deus que foi num tempo corpo humano,

E por virtude da erva poderosa

Foi convertido em peixe, e deste dano

Lhe resultou deidade gloriosa,

Inda vinha chorando o feio engano

Que Circe tinha usado com a formosa

Cila, que ele ama, desta sendo amado,

Que a mais obriga amor mal empregado.

 

25

Já finalmente todos assentados

Na grande sala, nobre e divinal;

As Deusas em riquíssimos estrados,

Os Deuses em cadeiras de cristal,

Foram todos do Padre agasalhados,

Que com o Tebano tinha assento igual.

De fumos enche a casa a rica massa

Que no mar nasce, e Arábia em cheiro passa.

 

26

Estando sossegado já o tumulto

Dos Deuses, e de seus recebimentos,

Começa a descobrir do peito oculto

A causa o Tioneu de seus tormentos:

Um pouco carregando-se no vulto,

Dando mostra de grandes sentimentos,

Só por dar aos de Luso triste morte

Com o ferro alheio, fala desta sorte:

 

27

Príncipe, que de juro senhoreias

Dum Pólo ao outro Pólo o mar irado,

Tu, que as gentes da terra toda enfreias,

Que não passem o termo limitado;

E tu, padre Oceano, que rodeias

O inundo universal, e o tens cercado,

E com justo decreto assim permites

Que dentro vivam só de seus limites;

 

28

E vós, Deuses do mar, que não sofreis

Injúria alguma em vosso reino grande,

Que com castigo igual vos não vingueis

De quem quer que por ele corra e ande:

Que descuido foi este em que viveis?

Quem pode ser que tanto vos abrande

Os peitos, com razão endurecidos

Contra os humanos fracos e atrevidos?

 

29

Vistes que com grandíssima ousadia

Foram já cometer o Céu supremo;

Vistes aquela insana fantasia

De tentarem o mar com vela e reino;

Vistes, e ainda vemos cada dia,

Soberbas e insolências tais, que temo

Que do mar e do Céu em poucos anos

Venham Deuses a ser, e nós humanos.

 

30

Vedes agora a fraca geração

Que dum vassalo meu o nome toma,

Com soberbo e altivo coração,

A vós, e a mi, e o mundo todo doma;

Vedes, o vosso mar cortando vão,

Mais do que fez a gente alta de Roma;

Vedes, o vosso reino devassando,

Os vossos estatutos vão quebrando.

 

31

Eu vi que contra os Mínias, que primeiro

No vosso reino este caminho abriram,

Bóreas injuriado, e o companheiro

Aquilo, e os outros todos resistiram.

Pois se do ajuntamento aventureiro

Os ventos esta injúria assim sentiram,

Vós, a quem mais compete esta vingança,

Que esperais?Porque a pondes em tardança?

 

32

E não consinto, Deuses, que cuideis

Que por amor de vós do céu desci,

Nem da mágoa da injúria que sofreis,

Mas da que se me faz também a mi;

Que aquelas grandes honras, que sabeis

Que no mundo ganhei, quando venci

As terras Indianas do Oriente,

Todas vejo abatidas desta gente.

 

33

Que o grã Senhor e Fados que destinam,

Como lhe bem parece, o baixo mundo,

Famas mores que nunca determinam

De dar a estes barões no mar profundo.

Aqui vereis, ó Deuses, como ensinam

O mal também a Deuses: que, a segundo

Se vê, ninguém já tem menos valia,

Que quem com mais razão valer devia.

 

34

E por isso do Olimpo já fugi,

Buscando algum remédio a meus pesares,

Por ver o preço que no Céu perdi,

Se por dita acharei nos vossos mares.

Mais quis dizer, e não passou daqui,

Porque as lágrimas já correndo a pares

Lhe saltaram dos olhos, com que logo

Se acendem as Deidades d'água em fogo.

 

35

A ira com que súbito alterado

O coração dos Deuses foi num ponto,

Não sofreu mais conselho bem cuidado,

Nem dilação, nem outro algum desconto.

Ao grande Eolo mandam já recado

Da parte de Netuno, que sem conto

Solte as fúrias dos ventos repugnantes,

Que não haja no mar mais navegantes.

 

36

Bem quisera primeiro ali Proteu

Dizer neste negócio o que sentia,

E segundo o que a todos pareceu,

Era alguma profunda profecia.

Porém tanto o tumulto se moveu

Súbito na divina companhia,

Que Tethys indignada lhe bradou:

Netuno sabe bem o que mandou.

 

37

Já lá o soberbo Hipótades soltava

Do cárcere fechado os furiosos

Ventos, que com palavras animava

Contra os varões audazes e animosos.

Súbito o céu sereno se obumbrava,

Que os ventos, mais que nunca impetuosos,

Começam novas forças a ir tomando,

Torres, montes e casas derribando.

 

38

Enquanto este conselho se fazia

No fundo aquoso, a leda lassa frota

Com vento sossegado prosseguia,

Pelo tranquilo mar, a longa rota.

Era no tempo quando a luz do dia

Do Eôo Hemisfério está remota;

Os do quarto da prima se deitavam,

Para o segundo os outros despertavam.

 

39

Vencidos vêm do sono, e mal despertos;

Bocejando a miúdo se encostavam

Pelas antenas, todos mal cobertos

Contra os agudos ares, que assopravam;

Os olhos contra seu querer abertos,

Alas estregando, os membros estiravam;

Remédios contra o sono buscar querem,

Histórias contam, casos mil referem.

 

40

Com que melhor podemos, um dizia,

Este tempo passar, que é tão pesado,

Senão com algum conto de alegria,

Com que nos deixe o sono carregado?

Responde Leonardo, que trazia

Pensamentos de firme namorado:

Que contos poderemos ter melhores,

Para passar o tempo, que de amores?

 

41

Não é, disse Veloso, coisa justa

Tratar branduras em tanta aspereza;

Que o trabalho do mar, que tanto custa,

Não sofre amores, nem delicadeza;

Antes de guerra férvida e robusta

A nossa história seja, pois dureza

Nossa vida há de ser, segundo entendo,

Que o trabalho por vir me está dizendo.

 

42

Consentem nisto todos, e encomendam

A Veloso que conte isto que aprova.

Contarei, disse, sem que me repreendam

De contar cousa fabulosa ou nova;

E porque os que me ouvirem daqui aprendam

A fazer feitos grandes de alta prova,

Dos nascidos direi na nossa terra,

E estes sejam os doze de Inglaterra.

 

43

No tempo que do Reino a rédea leve

João, filho de Pedro, moderava,

Depois que sossegado e livre o teve

Do vizinho poder, que o molestava,

Lá na grande Inglaterra, que da neve

Boreal sempre abunda, semeava

A fera Erínis dura e má cizânia,

Que lustre fosse a nossa Lusitânia.

 

44

Entre as damas gentis da corte Inglesa

E nobres cortesãos, acaso um dia

Se levantou discórdia em ira acesa,

Ou foi opinião, ou foi porfia.

Os cortesãos, a quem tão pouco pesa

Soltar palavras graves de ousadia,

Dizem que provarão, que honras e famas

Em tais damas não há para ser damas;

 

45

E que se houver alguém, com lança e espada,

Que queira sustentar a parte sua,

Que eles, em campo raso ou estacada,

Lhe darão feia infâmia, ou morte crua.

A feminil fraqueza Pouco usada,

Ou nunca, a opróbrios tais, vendo-se nua

De forças naturais convenientes,

Socorro pede a amigos e parentes.

 

46

Mas como fossem grandes e possantes

No reino os inimigos, não se atrevem

Nem parentes, nem férvidos amantes,

A sustentar as damas, como devem.

Com lágrimas formosas e bastantes

A fazer que em socorro os Deuses levem

De todo o Céu, por rostos de alabastro,

Se vão todas ao duque de Alencastro.

 

47

Era este Inglês potente, e militara

Com os Portugueses já contra Castela,

Onde as forças magnânimas provara

Dos companheiros, e benigna estrela:

Não menos nesta terra experimentara

Namorados afeitos, quando nela

A filha viu, que tinto o peito doma

Do forte Rei, que por mulher a toma.

 

48

Este, que socorrer-lhe não queria,

Por não causar discórdias intestinas,

Lhe diz: - Quando o direito pretendia

Do reino lá das terras Iberinas,

Nos Lusitanos vi tanta ousadia,

Tanto primor, e partes tão divinas,

Que eles sós poderiam, se não erro,

Sustentar vossa parte a fogo e ferro.

 

49

E se, agravadas damas, sois servidas,

Por vós lhe mandarei embaixadores,

Que, por cartas discretas e polidas,

De vosso agravo os façam sabedores.

Também por vossa parto encarecidas

Com palavras de afagos e de amores

Lhe sejam vossas lágrimas, que eu creio

Que ali tereis socorro e forte esteio. -

 

50

Destarte as aconselha o Duque experto,

E logo lhe nomeia doze fortes;

E por que cada dama um tenha certo,

Lhe manda que sobre eles lancem sortes,

Que elas só doze são; e descoberto

Qual a qual tem caído das consertes,

Cada uma escreve ao seu por vários modos,

E todas a seu Rei, e o Duque a todos.

 

51

Já chega a Portugal o mensageiro;

Toda a corte alvoroça a novidade;

Quisera o Rei sublime ser primeiro,

Mas não lhe sofre a Régia Majestade.

Qualquer dos cortesãos aventureiro

Deseja ser, com férvida vontade,

F, só fica por bem-aventurado

Quem já vem pelo Duque nomeado.

 

52

Lá na leal Cidade, donde teve

Origem (como é fama) o nome eterno

De Portugal, armar madeiro leve

Manda o que tem o leme do governo.

Apercebem-se os doze, em tempo breve,

De armas, e roupas de uso mais moderno,

De elmos, cimeiras, letras, e primores,

Cavalos, e concertos de mil cores.

 

53

Já do seu Rei tomado têm licença

Para partir do Douro celebrado

Aqueles, que escolhidos por sentença

Foram do Duque Inglês experimentado.

Não há na companhia diferença

De cavaleiro destro ou esforçado;

Mas um só, que Magriço se dizia,

Destarte fala à forte companhia:

 

54

Fortíssimos consócios, eu desejo

Há muito já de andar terras estranhas,

Por ver mais águas que as do Douro o Tejo,

Várias gentes, e leis, e várias manhas.

Agora, que aparelho certo vejo,

(Pois que do mundo as coisas são tamanhas)

Quero, se me deixais, ir só por terra,

Porque eu serei convosco em Inglaterra.

 

55

E quando caso for que eu impedido

Por quem das cousas é última linha,

Não for convosco ao prazo instituído,

Pouca falta vos faz a falta minha:

Todos por mim fareis o que é devido;

Mas, se a verdade o espírito me adivinha,

Rios, montes, fortuna, ou sua inveja,

Não farão que eu convosco lá não seja.

 

56

Assim diz, e abraçados os amigos,

E tomada licença, enfim se parte:

Passa Lião, Castela, vendo antigos

Lugares, que ganhara o pátrio Marte;

Navarra, com os altíssimos perigos

Do Perineu, que Espanha e Gália parte;

Vistas enfim de França as coisas grandes,

No grande empório foi parar de Frandes.

 

57

Ali chegado, ou fosse caso ou manha,

Sem passar se deteve muitos dias:

Mas dos onze a ilustríssima companha

Cortam do mar do Norte as ondas frias.

Chegados de Inglaterra à costa estranha,

Para Londres já fazem todos vias.

Do Duque são com festa agasalhados,

E das damas servidos e amimados.

 

58

Chega-se o prazo e dia assinalado

De entrar em campo já com os doze Ingleses,

Que pelo Rei já tinham segurado:

Armam-se de elmos, grevas e de arneses:

Já as damas têm por si, fulgente e armado,

O Mavorte feroz dos Portugueses;

Vestem-se elas de cores e de sedas,

De ouro e de jóias mil, ricas e ledas.

 

59

Mas aquela, a quem fora em sorte dado

Magriço, que não vinha, com tristeza

Se veste, por não ter quem nomeado

Seja seu cavaleiro nesta empresa;

Bem que os onze apregoam, que acabado

Será o negócio assim na corte Inglesa,

Que as damas vencedoras se conheçam,

Posto que dois e três dos seus faleçam.

 

60

Já num sublime e público teatro

Se assenta o Rei Inglês com toda a corte:

Estavam três e três, e quatro e quatro,

Bem como a cada qual coubera em sorte.

Não são vistos do Sol, do Tejo ao Batro,

De força, esforço e de ânimo mais forte

Outros doze sair, como os Ingleses,

No campo, contra os onze Portugueses.

 

61

Mastigam os cavalos, escumando,

Os áureos freios com feroz semblante;

Estava o Sol nas armas rutilando

Como em cristal ou rígido diamante;

Mas enxerga-se num e noutro bando

Partido desigual e dissonante

Dos onze contra os doze: quando a gente

Começa a alvoroçar-se geralmente.

 

62

Viram todos o rosto aonde havia

A causa principal do reboliço:

Eis entra um cavaleiro, que trazia

Armas, cavalo, ao bélico serviço.

Ao Rei e às damas fala, e logo se ia

Para os onze, que este era o grã Magriço;

Abraça os companheiros como amigos,

A quem não falta certo nos perigos.

 

63

A dama, como ouviu que este era aquele

Que vinha a defender seu nome e fama,

Se alegra, e veste ali do animal de Hele,

Que a gente bruta mais que virtude ama.

Já dão sinal, e o som da tuba impele

Os belicosos ânimos, que inflama:

Picam de esporas, largam rédeas logo,

Abaixam lanças, fere a terra fogo.

 

64

Dos cavalos o estrépito parece

Que faz que o chão debaixo todo treme;

O coração no peito, que estremece

De quem os olha, se alvoroça e teme:

Qual do cavalo voa, que não desce;

Qual, com o cavalo em terra dando, geme;

Qual vermelhas as armas faz de brancas;

Qual com os penachos do elmo açouta as ancas.

 

65

Algum dali tomou perpétuo sono

E fez da vida ao fim breve intervalo;

Correndo algum cavalo vai sem dono

E noutra parte o dono sem cavalo.

Cai a soberba Inglesa de seu trono,

Que dois ou três já fora vão do vale;

Os que de espada vêm fazer batalha,

Mais acham já que arnês, escudo e malha.

 

66

Gastar palavras em contar extremos

De golpes feros, cruas estocadas,

É desses gastadores, que sabemos,

Maus do tempo, com fábulas sonhadas.

Basta, por fim do caso, que entendemos

Que com finezas altas e afamadas,

Com os nossos fica a palma da vitória,

E as damas vencedoras, e com glória.

 

67

Recolhe o Duque os doze vencedores

Nos seus paços, com festas e alegria;

Cozinheiros ocupa e caçadores

Das damas a formosa companhia,

Que querem dar aos seus libertadores

Banquetes mil cada hora e cada dia,

Enquanto se detêm em Inglaterra,

Até tornar à doce e cara terra.

 

68

Mas dizem que, contudo, o grã Magriço,

Desejoso de ver as coisas grandes,

Lá se deixou ficar, onde um serviço

Notável à condessa fez de Frandes;

E como quem não era já noviço

Em todo trance, onde tu, Marte, mandes,

Um Francês mata em campo, que o destino

Lá teve de Torcato e de Corvino.

 

69

Outro também dos doze em Alemanha

Se lança, e teve um fero desafio

Com um Germano enganoso, que com manha

Não devida o quis pôr no extremo fio.

Contando assim Veloso, já a companha

Lhe pede que não f aça tal desvio

Do caso de Magriço, e vencimento,

Nem deixe o de Alemanha em esquecimento.

 

70

Mas, neste passo, assim prontos estando

Eis o mestre, que olhando os ares anda,

O apito toca; acordam despertando

Os marinheiros duma e doutra banda;

E porque o vento vinha refrescando,

Os traquetes das gáveas tomar manda:

Alerta, disse, estai, que o vento cresce

Daquela nuvem negra que aparece.

 

71

Não eram os traquetes bem tomados,

Quando dá a grande e súbita procela:

Amaina, disse o mestre a grandes brados,

Amaina, disse, amaina a grande vela!

Não esperam os ventos indinados

Que amainassem; mas juntos dando nela,

Em pedaços a fazem, com um ruído

Que o mundo pareceu ser destruído.

 

72

O céu fere com gritos nisto a gente,

Com súbito temor e desacordo,

Que, no romper da vela, a nau pendente

Toma grã suma d'água pelo bordo:

Alija, disse o mestre rijamente,

Alija tudo ao mar; não falte acordo.

Vão outros dar à bomba, não cessando;

A bomba, que nos imos alagando!

 

73

Correm logo os soldados animosos

A dar à bomba; e, tanto que chegaram,

Os balanços que os mares temerosos

Deram à nau, num bordo os derribaram.

Três marinheiros, duros e forçosos,

A menear o leme não bastaram;

Talhas lhe punham duma e doutra parte,

Sem aproveitar dos homens força e arte.

 

74

Os ventos eram tais, que não puderam

Mostrar mais força do ímpeto cruel,

Se para derribar então vieram

A fortíssima torre de Babel.

Nos altíssimos mares, que cresceram,

A pequena grandura dum batel

Mostra a possante nau, que move espanto,

Vendo que se sustém nas ondas tanto.

 

75

A nau grande, em que vai Paulo da Gama,

Quebrado leva o masto pelo meio.

Quase toda alagada: a gente chama

Aquele que a salvar o mundo veio.

Não menos gritos vãos ao ar derrama

Toda a nau de Coelho, com receio,

Conquanto teve o mestre tanto tento,

Que primeiro amainou, que desse o vento.

 

76

Agora sobre as nuvens os subiam

As ondas de Netuno furibundo;

Agora a ver parece que desciam

As íntimas entranhas do Profundo.

Noto, Austro, Bóreas, Aquilo queriam

Arruinar a máquina do mundo:

A noite negra e feia se alumia

Com os raios, em que o Pólo todo ardia.

 

77

As Alcióneas aves triste canto

Junto da costa brava levantaram,

Lembrando-se do seu passado pranto,

Que as furiosas águas lhe causaram.

Os delfins namorados entretanto

Lá nas covas marítimas entraram,

Fugindo à tempestade e ventos duros,

Que nem no fundo os deixa estar segui-os.

 

78

Nunca tão vivos raios fabricou

Contra a fera soberba dos Gigantes

O grã ferreiro sórdido, que obrou

Do enteado as armas radiantes;

Nem tanto o grã Tonante arremessou

Relâmpagos ao mundo fulminantes,

No grã dilúvio, donde sós viveram

Os dois que em gente as pedras converteram.

 

79

Quantos montes, então, que derribaram

As ondas que batiam denodadas!

Quantas árvores velhas arrancaram

Do vento bravo as fúrias indinadas!

As forçosas raízes não cuidaram

Que nunca para o céu fossem viradas,

Nem as fundas areias que pudessem

Tanto os mares que em cima as revolvessem.

 

80

Vendo Vasco da Gama que tão perto

Do fim de seu desejo se perdia;

Vendo ora o mar até o inferno aberto,

Ora com nova fúria ao céu subia,

Confuso de temor, da vida incerto,

Onde nenhum remédio lhe valia,

Chama aquele remédio santo é forte,

Que o impossível pode, desta sorte:

 

81

Divina Guarda, angélica, celeste,

Que os céus, o mar e terra senhoreias;

Tu, que a todo Israel refúgio deste

Por metade das águas Eritreias;

Tu, que livraste Paulo e o defendeste

Das Sirtes arenosas e ondas feias,

E guardaste com os filhos o segundo

Povoador do alagado e vácuo mundo;

 

82

Se tenho novos modos perigosos

Doutra Cila e Caríbdis já passados,

Outras Sirtes e baixos arenosos,

Outros Acroceráunios infamados,

No fim de tantos casos trabalhosos,

Por que somos de ti desamparados,

Se este nosso trabalho não te ofende,

Mas antes teu serviço só pretende?

 

83

Ó ditosos aqueles que puderam

Entre as agudas lanças Africanas

Morrer, enquanto fortes sostiveram

A santa Fé nas terras Mauritanas!

De quem feitos ilustres se souberam,

De quem ficam memórias soberanas,

De quem se ganha a vida com perdê-la,

Doce fazendo a morte as honras dela!

 

84

Assim dizendo, os ventos que lutavam

Como touros indómitos bramando,

Mais e mais a tormenta acrescentavam

Pela miúda enxárcia assoviando.

Relâmpados medonhos não cessavam,

Feros trovões, que vêm representando

Cair o céu dos eixos sobre a terra,

Consigo os elementos terem guerra.

 

85

Mas já a amorosa estrela cintilava

Diante do Sol claro, no Horizonte,

Mensageira do dia, e visitava

A terra e o largo mar, com leda fronte.

A densa que nos céus a governava,

De quem foge o ensífero Orionte,

Tanto que o mar e a cara armada vira,

Tocada junto foi de medo e de ira.

 

86

Estas obras de Baco são, por certo,

Disse; mas não será que avante leve

Tão danada tenção, que descoberto

Me será sempre o mil a que se atreve.

Isto dizendo, desce ao mar aberto,

No caminho gastando espaço breve,

Enquanto manda as Ninfas amorosas

Grinaldas nas cabeças pôr de rosas.

 

87

Grinaldas manda pôr de várias cores

Sobre cabelo; louros à porfia.

Quem não dirá que nascem roxas flores

Sobre ouro natural, que Amor enfia?

Abrandar determina, por amores,

Dos ventos a nojosa companhia,

Mostrando-lhe as amadas Ninfas belas,

Que mais formosas vinham que as estrelas.

 

88

Assim foi; porque, tanto que chegaram

A vista delas, logo lhe falecem

As forças com que dantes pelejaram,

E já como rendidos lhe obedecem.

Os pés e mãos parece que lhe ataram

Os cabelos que os raios escurecem.

A Bóreas, que do peito mais queria,

Assim disse a belíssima Oritia:

 

89

Não creias, fero Bóreas, que te creio

Que me tiveste nunca amor constante,

Que brandura é de amor mais certo arreio,

E não convém furor a firme amante.

Se já não pões a tanta insânia freio,

Não esperes de mi, daqui em diante,

Que possa mais amar-te, mas temer-te;

Que amor contigo em medo se converte.

 

90

Assim mesmo a formosa Galateia

Dizia ao fero Noto, que bem sabe

Que dias há que em vê-la se recreia,

E bem crê que com ele tudo acabe.

Não sabe o bravo tanto bem se o creia,

Que o coração no peito lhe não cabe,

De contente de ver que a dama o manda,

Pouco cuida que faz, se logo abranda.

 

91

Desta maneira as outras amansavam

Subitamente os outros amadores;

E logo à linda Vénus se entregavam,

Amansadas as iras e os furores.

Ela lhe prometeu, vendo que amavam,

Sempiterno favor em seus amores,

Nas belas mãos tomando-lhe homenagem

De lhe serem leais esta viagem.

 

92

Já a manhã clara dava nos outeiros

Por onde o Ganges murmurando soa,

Quando da celsa gávea os marinheiros

Enxergaram terra alta pela proa.

Já fora de tormenta, e dos primeiros

Mares, o temor vão do peito voa.

Disse alegre o piloto Melindano:

Terra é de Calecu, se não me engano.

 

93

Esta é por certo a terra que buscais

Da verdadeira Índia, que aparece;

E se do mundo mais não desejais,

Vosso trabalho longo aqui fenece.

Sofrer aqui não pode o Gama mais,

De ledo em ver que a terra se conhece:

Os geolhos no chão, as mãos ao céu,

A mercê grande a Deus agradeceu.

 

94

As graças a Deus dava, e razão tinha,

Que não somente a terra lhe mostrava,

Que com tanto temor buscando vinha,

Por quem tanto trabalho experimentava;

Mas via-se livrado tão asinha

Da morte, que no mar lhe aparelhava

O vento duro, fervido e medonho,

Como quem despertou de horrendo sonho.

 

95

Por meio destes hórridos perigos,

Destes trabalhos graves e temores,

Alcançam os que são de fama amigos

As honras imortais e graus maiores:

Não encostados sempre nos antigos

Troncos nobres de seus antecessores;

Não nos leitos dourados, entre os finos

Animais de Moscóvia zebelinos;

 

96

Não com os manjares novos e esquisitos,

Não com os passeios moles e ociosos,

Não com os vários deleites e infinitos,

Que afeminam os peitos generosos,

Não com os nunca vencidos apetitos

Que a Fortuna tem sempre tão mimosos,

Que não sofre a nenhum que o passo mude

Para alguma obra heróica de virtude;

 

97

Mas com buscar com o seu forçoso braço

As honras, que ele chame próprias suas;

Vigiando, e vestindo o forjado aço,

Sofrendo tempestades e ondas cruas;

Vencendo os torpes frios no regaço

Do Sul e regiões de abrigo nuas;

Engolindo o corrupto mantimento,

Temperado com um árduo sofrimento;

 

98

E com forçar o rosto, que se enfia,

A parecer seguro, ledo, inteiro,

Para o pelouro ardente, que assovia

E leva a perna ou braço ao companheiro.

Destarte, o peito um calo honroso cria,

Desprezador das honras e dinheiro,

Das honras e dinheiro, que a ventura

Forjou, e não virtude justa e dura.

 

99

Destarte se esclarece o entendimento,

Que experiências fazem repousado,

E fica vendo, corno de alto assento,

O baixo trato humano embaraçado.

Este, onde tiver força o regimento

Direito, e não de afeitos ocupado,

Subirá (como deve) a ilustre mando,

Contra vontade sua, e não rogando.

 

FIM.