BIBLIOTHECA AUGUSTANA

 

Fernão Lopes

1380 ? - 1460

 

Chronica do

Senhor Rei D. Pedro I,

oitavo Rei de Portugal

 

Capitulo XIV

 

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CAPITULO XIV

Como el-rei fez conde e

armou cavalleiro João Affonso Tello,

e da grão festa que lhe fez.

 

Em tres coisas assignadamente achamos, pela mór parte, que el-rei Dom Pedro de Portugal gastava seu tempo, a saber: em fazer justiça e desembargos do reino, e em monte e caça de que era mui querençoso, e em danças e festas segundo aquelle tempo, em que tomava grande sabor, que adur é agora para ser crido. E estas danças era a som de umas longas que então usavam, sem curando de outro instrumento posto que o hi houvesse: e se alguma vez lh'o queriam tanger, logo se enfadava d'elle e dizia que o dessem ao démo, e que lhe chamassem os trombeiros.

Ora deixemos os jogos e festas que el-rei ordenava por desenfadamento, nas quaes, de dia e de noite, andava dançando por mui grande espaço; mas vêde se era bem saboroso jogo. Vinha el-rei em bateis de Almada para Lisboa, e saiam-no a receber os cidadãos, e todos os dos misteres, com danças e trebelhos, segundo então usavam, e elle saia dos bateis, e mettia-se na dança com elles, e assim ia até ao paço.

Paraementes se foi bom sabor. Jazia el-rei em Lisboa uma noite na cama, e não lhe vinha somno para dormir, e fez levantar os mocos e quantos dormiam no paço, e mandou chamar João Matheus e Lourenço Palos, que trouxessem as trombas de prata, e fez accender tochas, e metteu-se pela villa em dança com os outros. As gentes que dormiam, saiam ás janellas, a vêr que festa era aquella, ou por que se fazia, e quando viram d'aquella guisa el-rei, tomaram prazer de o vêr assim lêdo. E andou el-rei assim grão parte da noite, e tornou-se ao paço em dança, e pediu vinho e fructa, e lancou-se a dormir.

E não curando mais falar de taes jogos: ordenou el-rei de fazer conde e armar cavalleiro João Affonso Tello, irmão de Martim Affonso Tello, e fez-lhe a mór honra, em sua festa, que até áquelle tempo fora visto que rei nenhum fizesse a semelhante pessoa; cá el-rei mandou lavrar seiscentas arrobas de cêra, de que fizeram cinco mil cirios e tochas, e vieram de termo de Lisboa, onde el-rei então estava, cinco mil homens das vintenas para terem os ditos cirios. E quando o conde houve de velar suas armas, no mosteiro de São Domingos d'essa cidade, ordenou el-rei que dês aquelle mosteiro até aos seus paços, que é assaz grande espaço, estivessem quedos aquelles homens todos, cada um com seu cirio accesso, que davam todos mui grande lume, e el-rei, com muitos fidalgos e cavalleiros, andavam por entre elles dançando e tomando sabor, e assim dispenderam grão parte da noite.

Em outro dia, estavam mui grandes tendas armadas no rocio, a cerca d'aquelle mosteiro, em que havia grandes montes de pão cosido, e, assáz de tinas cheias de vinho, e logo prestes por que bebessem, e fòra estavam ao fogo vaccas inteiras em espetos a assar, e quantos comer queriam d'aquella vianda, tinham-na muito prestes, e a nenhum não era vedada. E assim estiveram sempre em quanto durou a festa, na qual foram armados outros cavalleiros, cujos nomes não curamos dizer.