BIBLIOTHECA AUGUSTANA

 

Luís Vaz de Camões

1524/25 -1580

 

Os Lusíadas

 

Canto VII

 

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Canto sétimo.

 

1

Já se viam chegados junto à terra,

Que desejada já de tantos fora,

Que entre as correntes Indicas se encerra,

E o Ganges, que no céu terreno mora.

Ora, sus, gente forte, que na guerra

Quereis levar a palma vencedora,

Já sois chegados, já tendes diante

A terra de riquezas abundante.

 

2

A vós, ó geração de Luso, digo,

Que tão pequena parte sois no inundo;

Não digo ainda no mundo, mas no amigo

Curral de quem governa o céu rotundo;

Vós, a quem não somente algum perigo

Estorva conquistar o povo imundo,

Mas nem cobiça, ou pouca obediência

Da Madre, que nos céus está em essência;

 

3

Vós, Portugueses, poucos quanto fortes,

Que o fraco poder vosso não pesais;

Vós, que à custa de vossas várias mortes

A lei da vida eterna dilatais:

Assim do céu deitadas são as sortes,

Que vós, por muito poucos que sejais,

Muito façais na santa Cristandade:

Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!

 

4

Vede-los Alemães, soberbo gado,

Que por tão largos campos se apascenta,

Do sucessor de Pedro, rebelado,

Novo pastor, e nova seita inventa:

Vede-lo em feias guerras ocupado,

Que ainda com o cego error se não contenta,

Não contra o soberbíssimo Otomano,

Mas por sair do jugo soberano.

 

5

Vede-lo duro Inglês, que se nomeia

Rei da velha e santíssima cidade,

Que o torpe Ismaelita senhoreia,

(Quem viu honra tão longe da verdade?)

Entre as Boreais neves se recreia,

Nova maneira faz de Cristandade:

Para os de Cristo tem a espada nua,

Não por tomar a terra que era sua.

 

6

Guarda-lhe por entanto um falso Rei

A cidade Hierosólima terrestre,

Enquanto ele não guarda a santa lei

Da cidade Hierosólima celeste.

Pois de ti, Galo indigno, que direi?

Que o nome Cristianíssimo quiseste,

Não para defendê-lo, nem guardá-lo,

Mas para ser contra ele, e derrubá-lo!

 

7

Achas que tens direito em senhorios

De Cristãos, sendo o teu tão largo e tanto,

E não contra o Cinífio e Nilo, rios

Inimigos do antigo nome santo?

Ali se hão de provar da espada os fios

Em quem quer reprovar da Igreja o canto.

De Carlos, de Luís, o nome e a terra

Herdaste, e as causas não da justa guerra?

 

8

Pois que direi daqueles que em delícias,

Que o vil ócio no mundo traz consigo,

Gastam as vidas, logram as divícias,

Esquecidos de seu valor antigo?

Nascem da tirania inimicícias,

Que o povo forte tem de si inimigo:

Contigo, Itália, falo, já submersa

Em Vícios mil, e de ti mesma adversa.

 

9

Ó míseros Cristãos, pela ventura,

Sois os dentes de Cadmo desparzidos,

Que uns aos outros se dão a morte dura,

Sendo todos de um ventre produzidos?

Não vedes a divina sepultura

Possuída de cães, que sempre unidos

Vos vêm tomar a vossa antiga terra,

Fazendo-se famosos pela guerra?

 

10

Vedes que têm por uso e por decreto,

Do qual são tão inteiros observantes,

Ajuntarem o exército inquieto

Contra os povos que são de Cristo amantes;

Entre vós nunca deixa a fera Aleto

De semear cizânias repugnantes:

Olhai se estais seguros de perigos,

Que eles e vós sois vossos inimigos.

 

11

Se cobiça de grandes senhorios

Vos faz ir conquistar terras alheias,

Não vedes que Pactolo e Hermo, rios,

Ambos volvem auríferas areias?

Em Lídia, Assíria, lavram de ouro os fios;

África esconde em si luzentes veias;

Mova-vos já sequer riqueza tanta,

Pois mover-vos não pode a Casa Santa.

 

12

Aquelas invenções feras e novas

De instrumentos mortais da artilharia,

Já devem de fazer as duras provas

Nos muros de Bizâncio e de Turquia.

Fazei que torne lá às silvestres covas

Dos Cáspios montes, e da Cítia fria

A Turca geração, que multiplica

Na polícia da vossa Europa rica.

 

13

Gregos, Traces, Arménios, Georgianos,

Bradando-vos estão que o povo bruto

Lhe obriga os caros filhos aos profanos

Preceptos do Alcorão (duro tributo!)

Em castigar os feitos inumanos

Vos gloriai de peito forte e astuto,

E não queirais louvores arrogantes

De serdes contra os vossos muito possantes.

 

14

Mas entanto que cegos o sedentos

Andais de vosso sangue, ó gente insana!

Não faltarão Cristãos atrevimentos

Nesta pequena casa Lusitana:

De África tem marítimos assentos,

É na Ásia mais que todas soberana,

Na quarta parte nova os campos ara,

E se mais mundo houvera, lá chegara.

 

15

E vejamos entanto que acontece

Aqueles tão famosos navegantes,

Depois que a branda Vénus enfraquece

O furor vão dos ventos repugnantes:

Depois que a larga terra lhe aparece,

Fim de suas porfias tão constantes,

Onde vêm semear de Cristo a, lei,

E dar novo costume e novo Rei.

 

16

Tanto que à nova terra se chegaram,

Leves embarcações de pescadores

Acharam, que o caminho lhe mostraram

De Calecu, onde eram moradores.

Para lá logo as proas se inclinaram,

Porque esta era a cidade das melhores

Do Malabar melhor, onde vivia

O Rei que a terra toda possuía.

 

17

Além do Indo jaz, e aquém do Gange,

Um terreno muito grande e assaz famoso,

Que pela parte Austral o mar abrange,

E para o Norte o Emódio cavernoso.

Jugo de Reis diversos o constrange

A várias leis: alguns o vicioso

Mahoma, alguns os ídolos adoram,

Alguns os animais, que entre eles morri.

 

18

Lá bem no grande monte, que cortando

Tão larga terra, toda Ásia discorre,

Que nomes tão diversos vai tomando,

Segundo as regiões por onde corre,

As fontes saem, donde vêm manando

Os rios, cuja grã corrente morre

No mar Índico, e cercam todo o peso

Do terreno, fazendo-o Quersoneso.

 

19

Entro um e outro rio, em grande espaço,

Sai da larga terra uma loira ponta

Quase piramidal, que no regaço

Do mar com Ceilão ínsula confronta;

E junto donde nasce o largo braço

Gangético, o rumor antigo conta

Que os vizinhos, da terra moradores,

Do cheiro se mantêm das finas flores.

 

20

Mas agora de nomes e de usança

Novos e vários são os habitantes:

Os Delis, os Patanes, que em possança

De terra e gente, são mais abundantes;

Decanis, Oriás, que a esperança

Têm de sua salvação nas ressonantes

Águas do Gange, e a terra de Bengala

Fértil de sorte que outra não lhe iguala.

 

21

O Reino de Cambaia belicoso

(Dizem que foi de Poro, Rei potente)

O Reino de Narsinga, poderoso

Mais de ouro e pedras que de forte gente.

Aqui se enxerga lá do mar undoso

Um monte alto, que corre longamente,

Servindo ao Malabar de forte muro,

Com que do Canará vive seguro.

 

22

Da terra os naturais lhe chamam Gate,

Do pé do qual pequena quantidade

Se estende uma fralda estreita, que combate

Do mar a natural ferocidade.

Aqui de outras cidades, sem debate,

Calecu tem a ilustre dignidade

De cabeça de Império rica e bela:

Samorim se intitula o senhor dela.

 

23

Chegada a frota ao rico senhorio,

Um Português mandado logo parte

A fazer sabedor o Rei gentio

Da vinda sua a tão remota parte.

Entrando o mensageiro pelo rio,

Que ali nas ondas entra, a não vista arte,

A cor, o gesto estranho, o trajo novo

Fez concorrer a vê-lo todo o povo.

 

24

Entre a gente que a vê-lo concorria,

Se chega um Mahometa, que nascido

Fora na região da Berberia,

Lá onde fora Anteu obedecido:

Ou pela vizinhança já teria

O Reino Lusitano conhecido,

Ou foi já assinalado de seu ferro:

Fortuna o trouxe a tão loiro desterro.

 

25

Em vendo o mensageiro, com jocundo

Rosto, como quem sabe a língua Hispana,

Lhe disse: Quem te trouxe a estoutro mundo,

Tão longe da tua pátria Lusitana?

- Abrindo, lhe responde, o mar profundo,

Por onde nunca veio gente humana,

Vimos buscar do Indo a grão corrente,

Por onde a Lei divina se acrescente.

 

26

Espantado ficou da grã viagem

O Mouro, que Monçaide se chamava,

Ouvindo as opressões que na passagem

Do mar, o Lusitano lhe contava:

Mas vendo enfim que a f orça da mensagem

Só para o Rei da terra relevava,

Lhe diz que estava f ora da cidade,

Mas de caminho pouca quantidade.

 

27

E que, entanto que a nova lhe chegasse

De sua estranha vinda, se queria,

Na sua pobre casa repousasse,

E do manjar da terra comeria,

E depois que se um pouco recreasse,

Com ele para a armada tornaria,

Que alegria não pode ser tamanha,

Que achar gente vizinha em terra estranha.

 

28

O Português aceita de vontade

O que o ledo Monçaide lhe oferece;

Como se longa fora já a amizade,

Com ele come, e bebe, e lhe obedece.

Ambos se tornam logo da cidade

Para a frota, que o Mouro bem conhece;

Sobem à capitania; e toda a gente

Monçaide recebeu benignamente.

 

29

O Capitão o abraça em cabo ledo,

Ouvindo clara a língua de Castela;

Junto de si o assenta, e pronto e quedo,

Pela terra pergunta, e cousas dela.

Qual se ajuntava em Ródope o arvoredo,

Só por ouvir o amante da donzela

Eurídice, tocando a lira de ouro,

Tal a gente se ajunta a ouvir o Mouro.

 

30

Ele começa: Ó gente, que a natura

Vizinha fez de meu paterno ninho,

Que destino tão grande ou que ventura

Vos trouxe a cometerdes tal caminho?

Não é sem causa, não, oculta e escura,

Vir do longínquo Tejo e ignoto Minho,

Por mares nunca doutro lenho arados,

A Reinos tão remotos e apartados.

 

31

Deus por certo vos traz, porque pretende

Algum serviço seu por vós obrado;

Por isso só vos guia, e vos defende

Dos inimigos, do mar, do vento irado.

Sabei que estais na Índia, onde se estende

Diverso povo, rico e prosperado

De ouro luzente e fina pedraria,

Cheiro suave, ardente especiaria.

 

32

Esta província, cujo porto agora

Tomado tendes, Malabar se chama:

Do culto antigo os ídolos adora,

Que cá por estas partes se derrama:

De diversos Reis é, mas dum só

Noutro tempo, segundo a antiga fama;

Saramá Perimal foi derradeiro

Rei, que este Reino teve unido e inteiro.

 

33

Porém, como a esta terra então viessem

De lá do seio Arábico outras gentes,

Que o culto Mahomético trouxessem,

No qual me instituíram meus parentes,

Sucedeu que pregando convertessem

O Perimal: de sábios e eloquentes,

Fazem-lhe a lei tomar com fervor tanto,

Que pressupôs de nela morrer santo.

 

34

Naus arma, e nelas mete curioso

Mercadoria, que ofereça rica,

Para ir nelas a ser religioso,

Onde o profeta jaz, que a Lei publica;

Antes que parta, o Reino poderoso

Com os seus reparte, porque não lhe fica

Herdeiro próprio, faz os mais aceitos

Ricos de pobres, livres de sujeitos.

 

35

A um Cochim, e a outro Cananor,

A qual Chalé, a qual a ilha da Pimenta,

A qual Coulão, a qual dá Cranganor,

E os mais, a quem o mais serve e contenta,

Um só moço, a quem tinha muito amor,

Depois que tudo deu, se lhe apresenta:

Para este Calecu somente fica,

Cidade já por trato nobre e rica.

 

36

Esta lhe dá com o título excelente

De Imperador, que sobre os outros mande.

Isto feito, se parte diligente

Para onde em santa vida acabe, e ande.

E daqui fica o nome de potente

Samori, mais que todos digno e grande,

Ao moço e descendentes; donde vem

Este, que agora o Império manda e tem.

 

37

A Lei da gente toda, rica e pobre,

De fábulas composta se imagina:

Andam nus, e somente um pano cobre

As partes, que a cobrir natura ensina.

Dois modos há de gente, porque a nobre

Naires chamados são, e a menos digna

Poleás tem por nome, a quem obriga

A Lei não misturar a casta antiga.

 

38

Porque os que usaram sempre um mesmo ofício,

De outro não podem receber consorte,

Nem os filhos terão outro exercício,

Senão o de seus passados, até morte.

Para os Naires é certo grande vício

Destes serem tocados; de tal sorte,

Que quando algum se toca, por ventura,

Com cerimónias mil se alimpa e apura.

 

39

Desta sorte o Judaico povo antigo

Não tocava na gente de Samária.

Mais estranhezas ainda das que digo

Nesta terra vereis de usança vária.

Os Naires sós são dados ao perigo

Das armas; sós defendem da contrária

Banda o seu Rei, trazendo sempre usada

Na esquerda a adarga e na direita a espada.

 

40

Brâmenes são os seus religiosos,

Nome antigo e de grande proeminência:

Observam os preceitos tão famosos

Dum que primeiro pôs nome à ciência:

Não matam coisa viva, e, temerosos,

Das carnes têm grandíssima abstinência;

Somente no venéreo ajuntamento

Têm mais licença e menos regimento.

 

41

Gerais são as mulheres, mas somente

Para os da geração de seus maridos:

Ditosa condição, ditosa gente,

Que não são de ciúmes ofendidos!

Estes e outros costumes variamente

São pelos Malabares admitidos.

A terra é grossa em trato, em tudo aquilo

Que as ondas podem dar da China ao Nilo.

 

42

Assim contava o Mouro; mas vagando

Andava a fama já pela cidade

Da vinda desta gente estranha, quando

O Rei saber mandava da verdade.

Já vinham pelas ruas caminhando,

Rodeados de todo sexo e idade,

Os principais, que o Rei buscar mandara

O Capitão da armada, que chegara.

 

43

Mas ele, que do Rei já tem licença

Para desembarcar, acompanhado

Dos nobres Portugueses, sem detença

Parte, de ricos panos adornado.

Das cores a formosa diferença

A vista alegra ao povo alvoroçado.

O remo compassado fere frio

Agora o mar, depois o fresco rio.

 

44

Na praia um regedor do Reino estava,

Que na sua língua Catual se chama,

Rodeado de Naires, que esperava

Com desusada festa o nobre Gama.

Já na terra, nos braços o levava,

E num portátil leito uma rica cama

Lhe oferece, em que vá, costume usado,

Que nos ombros dos homens é levado.

 

45

Desta arte o Malabar, destarte o Luso

Caminham, lá para onde o Rei o espera:

Os outros Portugueses vão ao uso

Que infantaria segue, esquadra fera.

O povo que concorre vai confuso

De ver a gente estranha, e bem quisera

Perguntar: mas no tempo já passado

Na torre de Babel lhe foi vedado.

 

46

O Gama e o Catual iam falando

Nas coisas, que lhe o tempo oferecia;

Monçaide entre eles vai interpretando

As palavras que de ambos entendia.

Assim pela cidade caminhando,

Onde uma rica fábrica se erguia

De um sumptuoso templo, já chegavam,

Pelas portas do qual juntos entravam.

 

47

Ali estão das deidades as figuras

Esculpidas em pau e em pedra fria;

Vários de gestos, vários de pinturas,

A segundo o Demónio lhe fingia:

Vêem-se as abomináveis esculturas,

Qual a Quimera em membros se varia:

Os Cristãos olhos, a ver Deus usados

Em forma humana, estão maravilhados.

 

48

Um na cabeça cornos esculpidos,

Qual Júpiter Amon em Líbia estava;

Outro num corpo rostos tinha unidos,

Bem como o antigo Jano se pintava;

Outro com muitos braços divididos

A Briareu parece que imitava;

Outro fronte canina tem de fora,

Qual Anúbis Menfítico se adora.

 

49

Aqui feita do bárbaro gentio

A supersticiosa adoração,

Direitos vão, sem outro algum desvio,

Para onde estava o Rei do povo vão.

Engrossando-se vai da gente o fio,

Com os que vêm ver o estranho Capitão;

Estão pelos telhados e janelas

Velhos e moços, donas e donzelas.

 

50

Já chegam perto, e não com passos lentos,

Dos jardins odoríferos formosos,

Que em si escondem os régios aposentos,

Altos de torres não, mas sumptuosos.

Edificam-se os nobres seus assentos

Por entre os arvoredos deleitosos:

Assim vivem os Reis daquela gente,

No campo e na cidade juntamente.

 

51

Pelos portais da cerca a sutileza

Se enxerga da Dedálea facultade,

Em figuras mostrando, por nobreza,

Da Índia a mais remota antiguidade.

Afiguradas vão com tal viveza

As histórias daquela antiga idade,

Que quem delas tiver notícia inteira,

Pela sombra conhece a verdadeira.

 

52

Estava um grande exército que pisa

A terra Oriental, que o Idaspe lava;

Rege-o um capitão de fronte lisa,

Que com frondentes tirsos pelejava;

Por ele edificada estiva Nisa

Nas ribeiras do rio, que manava,

Tão próprio, que se ali estiver Semele,

Dirá, por certo, que é seu filho aquele.

 

53

Mais avante bebendo seca o rio

Mui grande multidão da Assíria gente,

Sujeita a feminino senhorio

De uma tão bela como incontinente.

Ali tem junto ao lado nunca frio,

Esculpido o feroz ginete ardente,

Com quem teria o filho competência:

Amor nefando, bruta incontinência!

 

54

Daqui mais apartadas tremulavam

As bandeiras de Grécia gloriosas,

Terceira Monarquia, e sojugavam

Até as águas Gangéticas undosas.

Dum capitão mancebo se guiavam,

De palmas rodeado valerosas,

Que já, não de Filipo, mas sem falta

De progénie de Júpiter se exalta.

 

55

Os Portugueses vendo estas memórias,

Dizia o Catual ao Capitão:

Tempo cedo virá que outras vitórias

Estas, que agora olhais, abaterão;

Aqui se escreverão novas histórias

Por gentes estrangeiras que virão;

Que os nossos sábios magos o alcançaram

Quando o tempo futuro especularam.

 

56

E diz-lhe mais a mágica ciência

Que, para se evitar força tamanha,

Não valerá dos homens resistência,

Que contra o Céu não val da gente manha;

Mas também diz que a bélica excelência,

Nas armas e na paz, da gente estranha

Será tal, que será no mundo ouvido

O vencedor, por glória do vencido,

 

57

Assim falando entravam já na sala,

Onde aquele potente Imperador

Numa camilha jaz, que não se iguala

De outra alguma no preço e no lavor.

No recostado gesto se assinala

Um venerando e próspero senhor;

Um pano de ouro cinge, e na cabeça

De preciosas gemas se adereça.

 

58

Bem junto dele um velho reverente,

Com os giolhos no chão, de quando em quando

Lhe dava a verde folha da erva ardente,

Que a seu costume estava ruminando.

Um Brâmene, pessoa proeminente,

Para o Gama vem com passo brando,

Para que ao grande Príncipe o apresente,

Que diante lhe acena que se assente.

 

59

Sentado o Gama junto ao rico leito,

Os seus mais afastados, pronto em vista

Estava o Samori no trajo e jeito

Da gente, nunca de antes dele vista.

Lançando a grave voz do sábio peito,

Que grande autoridade logo aquista

Na opinião do Rei e do povo todo,

O Capitão lhe fala deste modo:

 

60

Um grande Rei, de lá das partes Onde

O céu volúvel, com perpétua roda,

Da terra a luz solar com a terra esconde,

Tingindo a que deixou de escura noda,

Ouvindo do rumor que lá responde

O eco, como em ti da Índia toda

O principado está, e a majestade,

Vínculo quer contigo de amizade.

 

61

E por longos rodeios a ti manda,

Por te fazer saber que tudo aquilo

Que sobre o mar, que sobre as terras anda

De riquezas, de lá do Tejo ao Nilo,

E desde a fria plaga de Gelanda

Até bem donde o Sol não muda o estilo

Nos dias, sobre a gente de Etiópia,

Tudo tem no seu Reino em grande cópia.

 

62

E se queres com pactos e alianças

De paz e de amizade sacra e nua

Comércio consentir das abastanças

Das fazendas da terra sua e tua,

Por que cresçam as rendas e abastanças,

Por quem a gente mais trabalha e sua,

De vossos Reinos, será certamente

De ti proveito, o dele glória ingente.

 

63

E sendo assim, que o nó desta amizade

Entre vós firmemente permaneça,

Estará pronto a toda adversidade,

Que por guerra a teu Reino se ofereça,

Com gente, armas e naus, de qualidade

Que por irmão te tenha e te conheça;

E da vontade em ti sobre isto posta

Me dês a mim certíssima resposta.

 

64

Tal embaixada dava o Capitão,

A quem o Rei gentio respondia

Que, em ver embaixadores de nação

Tão remota, grã glória recebia;

Mas neste caso a última tenção

Com os de seu conselho tomaria,

Informando-se certo de quem era

O Rei, e a gente, e terra que dissera..

 

65

E que entanto podia do trabalho

Passado ir repousar, e em tempo breve

Daria a seu despacho um justo talho,

Com que a seu Rei resposta alegre leve.

Já nisto punha a noite o usado atalho

As humanas canseiras, por que ceve

De doce sono os membros trabalhados,

Os olhos ocupando ao ócio dados.

 

66

Agasalhados foram juntamente

O Gama e Portugueses no aposento

Do nobre Regedor da Índica gente,

Com festas e geral contentamento.

O Catual, no cargo diligente

De seu Rei, tinha já por regimento

Saber da gente estranha donde vinha,

Que costumes, que lei, que terra tinha.

 

67

Tanto que os ígneos carros do formoso

Mancebo Délio viu, que a luz renova,

Manda chamar Monçaide, desejoso

De poder-se informar da gente nova.

Já lhe pergunta pronto e curioso,

Se tem notícia inteira e certa prova

Dos estranhos, quem são; que ouvido tinha

Que é gente de sua pátria muito vizinha;

 

68

Que particularmente ali lhe desse

Informação mui larga, pois faria

Nisso serviço ao Rei, por que soubesse

O que neste negócio se faria.

Monçaide torna: - Posto que eu quisesse

Dizer-te disto mais, não saberia;

Somente sei que é gente lá de Espanha,

Onde o meu ninho e o Sol no mar se banha.

 

69

Têm a lei dum Profeta, que gerado

Foi sem fazer na carne detrimento

Da mãe, tal que por bafo está aprovado

Do Deus, que tem do mundo o regimento,

O que entre meus antigos é vulgado

Deles, é que o valor sanguinolento

Das armas no seu braço resplandece,

O que em nossos passados se parece.

 

70

Porque eles, com virtude sobre-humana,

Os deitaram dos campos abundosos

Do rico Tejo e fresco Goadiana,

Com feitos memoráveis e famosos:

E não contentes ainda, e na Africana

Parte, cortando os mares procelosos,

Nos não querem deixar viver seguros,

Tomando-nos cidades e altos muros.

 

71

Não menos têm mostrado esforço e manha

Em quaisquer outras guerras que aconteças,

Ou das gentes belígeras de Espanha,

Ou lá dalguns que do Pírene desçam.

Assim que nunca enfim com lança estranha

Se tem, que por vencidos se conheçam,

Nem se sabe ainda, não, te afirmo e asselo,

Para estes Anibais nenhum Marcelo.

 

72

E se esta informação não for inteira

Tanto quanto convém, deles pretende

Informar-te, que é gente verdadeira,

A quem mais falsidade enoja e ofende:

Vai ver-lhe a f rota, as armas e a maneira

Do fundido metal, que tudo rende,

E folgarás de veres a polícia

Portuguesa na paz e na milícia.

 

73

Já com desejos o Idolatra ardia

De ver isto, que o Mouro lhe contava.

Manda esquipar batéis que ir ver queria

Os lenhos em que o Gama navegava.

Ambos partem da praia, a quem seguia

A Naira geração, que o mar coalhava.

A capitania sobem forte e bela,

Onde Paulo os recebe a bordo dela.

 

74

Purpúreos são os toldos, e as bandeiras

Do rico fio são que o bicho gera;

Nelas estão pintadas as guerreiras

Obras, que o forte braço já fizera:

Batalhas tem campais, aventureiras,

Desafios cruéis, pintura fera,

Que, tanto que ao Gentio se apresenta,

A tento nela os olhos apascenta.

 

75

Pelo que vê pergunta; mas o Gama

Lhe pedia primeiro que se assente,

E que aquele deleite, que tanto ama

A seita Epicureia, experimente.

Dos espumantes vasos se derrama

O licor que Noé mostrara à gente:

Mas comer o Gentio não pretende,

Que a seita que seguia lho defende.

 

76

A trombeta que, em paz, no pensamento

Imagem faz de guerra, rompe os ares;

Com o fogo o diabólico instrumento

Se faz ouvir no fundo lá dos mares.

Tudo o Gentio nota; mas o intento

Mostrava sempre ter nos singulares

Feitos dos homens, que em retrato breve

A muda poesia ali descreve

 

77

Alça-se em pé, com ele o Gama junto,

Coelho de outra parti, e o Mauritano;

Os olhos põe no bélico transunto

De um velho branco, aspecto venerando

Cujo nome não pode ser defunto

Enquanto houver no mundo trato humano:

No trajo a Grega usança está perfeita,

Um ramo por insígnia na direita.

 

78

Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego!

Eu, que cometo insano e temerário,

Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,

Por caminho tão árduo, longo e vário!

Vosso favor invoco, que navego

Por alto mar, com vento tão contrário,

Que, se não me ajudais, hei grande medo

Que o meu fraco batel se alague cedo.

 

79

Olhai que há tanto tempo que, cantando

O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,

A fortuna mo traz peregrinando,

Novos trabalhos vendo, e novos danos:

Agora o mar, agora experimentando

Os perigos Mavórcios inumanos,

Qual Canace, que à morte se condena,

Numa mão sempre a espada, e noutra a pena.

 

80

Agora, com pobreza avorrecida,

Por hospícios alheios degradado;

Agora, da esperança já adquirida,

De novo, mais que nunca, derribado;

Agora às costas escapando a vida,

Que dum fio pendia tão delgado

Que não menos milagre foi salvar-se

Que para o Rei Judaico acrescentar-se.

 

81

E ainda, Ninfas minhas, não bastava

Que tamanhas misérias me cercassem,

Senão que aqueles, que eu cantando andava

Tal prémio de meus versos me tornassem:

A troco dos descansos que esperava,

Das capelas de louro que me honrassem,

Trabalhos nunca usados me inventaram,

Com que em tão duro estado me deitaram.

 

82

Vede, Ninfas, que engenhos de senhores

O vosso Tejo cria valorosos,

Que assim sabem prezar com tais favores

A quem os faz, cantando, gloriosos!

Que exemplos a futuros escritores,

Para espertar engenhos curiosos,

Para porem as coisas em memória,

Que merecerem ter eterna glória!

 

83

Pois logo em tantos males é forçado,

Que só vosso favor me não faleça,

Principalmente aqui, que sou chegado

Onde feitos diversos engrandeça:

Dai-mo vós sós, que eu tenho já jurado

Que não o empregue em quem o não mereça,

Nem por lisonja louve algum subido,

Sob pena de não ser agradecido.

 

84

Nem creiais, Ninfas, não, que a fama desse

A quem ao bem comum e do seu Rei

Antepuser seu próprio interesse,

Inimigo da divina e humana Lei.

Nenhum ambicioso, que quisesse

Subir a grandes cargos, cantarei,

Só por poder com torpes exercícios

Usar mais largamente de seus vícios;

 

85

Nenhum que use de seu poder bastante,

Para servir a seu desejo feio,

E que, por comprazer ao vulgo errante,

Se muda em mais figuras que Proteio.

Nem, Camenas, também cuideis que canto

Quem, com hábito honesto e grave, veio,

Por contentar ao Rei no ofício novo,

A despir e roubar o pobre povo.

 

86

Nem quem acha que é justo e que é direito

Guardar-se a lei do Rei severamente,

E não acha que é justo e bom respeito,

Que se pague o suor da servil gente;

Nem quem sempre, com pouco experto peito,

Razões aprende, e cuida que é prudente,

Para taxar, com mão rapace e escassa,

Os trabalhos alheios, que não passa.

 

87

Aqueles sós direi, que aventuraram

Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida,

Onde, perdendo-a, em fama a dilataram,

Tão bem de suas obras merecida.

Apolo, e as Musas que me acompanharam,

Me dobrarão a fúria concedida,

Enquanto eu tomo alento descansado,

Por tornar ao trabalho, mais folgado.

 

FIM.